CARNE VIVA

 Affonso Romano de Sant'Anna


       Hipocritamente durmo na madrugada enquanto bois são abatidos nos
frigoríficos da manhã.
       Durmo hipocritamente sem ver o sangue que escorre pelas calhas da noite e
começam a subir, ondeando, pelos pés de minha cama. Durmo sem ver o olhar do
boi no matadouro. O olhar. O berro. A morte.
       Tapo os ouvidos, mas os grunhidos dos porcos rasgam o pêlo da noite. O
sangue espirra do curral da madrugada e homens ávidos vão desenrolando as
tripas da fera, que estrebucha, para convertê-las em lingüiça que hipócrita
e porcamente me serão servidas.
       Uma vez contaram-me como se matam gansos na França. Os bois, a gente pode
pensar, levam aquela pancada súbita na cabeça e desmontam sua carcaça no
ladrilho. Mas os gansos são cevados, como se cevam os frangos. Os frangos
sabem que vão morrer nos campos de concentração vigiados pela SS dos
frigoríficos. Mas os gansos conhecem o martirológio dos santos e
penitentes.
        Começam a engordá-los.Ou, pior: cevá-los forçadamente. Os frangos, sabemos,
são alimentados também artificiosamente; deixam aquelas luzes acesas noite
e dia, e eles comendo, bicando, comendo, bicando os segundos, bicando os
minutos numa engorda rápida e lucroza.
        Mas os gansos são agarrados à força. E então começa-se, por um funil, a
socar para dentro deles a ração. Um funil ou moedor para que a comida já vá
direta para dentro, chegue mais rapidamente ao fígado que, em forma de
patê, colocarei em minha mesa no fim de semana na casa de campo. Mas não é
sobre gansos que estou escrevendo especificamente e sim sobre a carne que
para mim se prepara na escuridão hipócrita de minha fome.
         Na infância todo mundo (pelo menos no interior e antigamente) havia sempre
uma galinha que alguém começou a matar na cozinha. E foi cortar o pescoço
dela, tendo asas presas sob os pés contra o ladrilho, e, de repente ela se
soltou.  Soltou-se e saiu com o pescoço pendurado jogando sangue pelas
paredes até expirar no degrau para o quintal.
         Há quem vá aos restaurantes especializados em peixes, porque quer ver o
peixe vivo, o peixe que vai escolher no aquário. E aponta-lhe o dedo, "quero
aquele ali", e se senta à mesa, enquanto na cozinha jogam lagostas vivas na
água fervente e a champanha espuma sua indiferença na taça dos ricos.
         Carne deveria dar em árvore.
         Mas um dia me mostraram uma árvore que sangra. Meu caseiro espetava-lhe um
prego, arame ou qualquer instrumento torturante, e lá vinha aquela gota
vermelha. Não faz muito descobriram que os vegetais também são seres
humanos. Já ouviram tomate chorar e laranjas terem vertigens quando
colheram uma ao lado da outra na lâmina da morte.
         E a esta hora estão pegando leitõezinhos que, assados, ainda ganham sobre o
nariz uma rodela de laranja, e aqui e ali azeitonas e outros adereços. E
hipocritamente me assento numa churrascaria. Bebo um chope junto com a
caipirinha e peço voluptuosamente uma picanha. Por que não, um churrasco
completo? Sim, aceito. E lá vêm os cadáveres eufóricos, correndo para o meu
prato: tomo a faca, empunho o garfo como um guerreiro tártaro. E como, e
como. E rumino. E mastigo. E gosto. O sangue da vítima vai se misturando ao
meu civilizadamente. Barbaramente.
         O pior antropófago é o que tem remorsos de sobremesa.


--
Maísa Râmia Nabuco
http://doidaporlegumes.wordpress.com
Cel. 9107.0246

Coletivo Deixe Viver (orkut)
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=2444520


"Feliz seria a terra se todos os seres estivessem unidos pelos laços da benevolência e só se alimentassem de alimentos puros, sem derrame de sangue. Os dourados grãos que nascem para todos dariam para alimentar e dar fartura ao mundo".
(Buddha)

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